Saúde. Os dois homens tinham câncer e, além dos antirretrovirais, tomaram medicamentos quimioterápicos; os casos foram apresentados na Conferência Internacional sobre a Aids, em Washington, e levantam a discussão em torno da busca da cura da doença
FERNANDA BASSETTE - O Estado de S.Paulo
Dois homens parecem ter sido curados do HIV depois de
serem submetidos a um transplante de medula óssea para tratamento de um
câncer. Os casos foram apresentados na Conferência Internacional sobre a
Aids, em Washington, e levantaram a discussão em torno da busca da cura
da doença.
Os dois homens foram acompanhados pelo médico Daniel Kuritzkes, do
Hospital de Mulheres de Brigham, em Boston. Um deles foi monitorado por
quase dois anos após seu transplante, enquanto o outro foi testado
durante três anos e meio. Segundo o estudo, não há mais rastro do vírus
em nenhum dos casos.
Os dois pacientes tinham se submetido ao tratamento antirretroviral. A
carga viral estava indetectável, mas o vírus ainda estava latente antes
do transplante. Eles receberam uma forma mais leve de quimioterapia
antes do transplante, e continuaram tomando seus remédios para HIV
durante todo o processo.
O ineditismo desses casos é que os dois pacientes receberam células
de doadores comuns, o que os torna diferentes do famoso caso do
"paciente de Berlim" - o americano que se diz curado do HIV também
depois de receber um transplante de medula. Ele recebeu as células de um
doador raro que possuía uma resistência natural ao HIV (sem o receptor
CCR5 que faz o vírus entrar na célula).
Os médicos detectaram o HIV imediatamente após o transplante nos dois
pacientes, mas, com o tempo, as células transplantadas dos doadores
substituíram os linfócitos dos pacientes e a quantidade de HIV no DNA
diminuiu até ficar indetectável.
Apesar do conquistado, o autor do estudo não fala em cura da aids. Os
pacientes continuaram tomando os antirretrovirais, que serão retirados
aos poucos.
Cautela. Ésper Kallas, coordenador do Departamento de Retroviroses da
Sociedade Brasileira de Infectologia e professor da USP, diz que essa
discussão tem "importância incalculável", mas que muitas perguntas
precisam ser respondidas.
Ele ressalta que até hoje os pacientes com HIV que fizeram
transplantes de medula tinham também câncer. "Ninguém fez o transplante
em um paciente com HIV e sem câncer porque ninguém quer assumir esse
risco", diz o professor.
Kallas diz que os pesquisadores precisam responder por que o
transplante deu certo: será que foi a quimioterapia que desligou o
sistema imune? Será que foi o quimioterápico? Ou as células dos
doadores? "A partir do momento em que o mecanismo é identificado, você
evita procedimentos desnecessários", avalia.
Outra ponderação de Kallas é que o paciente com HIV pode achar que
vai fazer o transplante e se ver livre dos remédios. "O transplantado
também toma muitos remédios e faz acompanhamento constante. Me pergunto
se não é trocar seis por meia dúzia."
O hematologista Vanderson Rocha, do Sírio-Libanês, também vê os
resultados com cautela. Segundo ele, entre 1983 e 2010, ao menos 60
pacientes com HIV e câncer foram transplantados - muitos morreram na
época que não existia terapia com antirretrovirais.
"Hoje em dia, com os antirretrovirais, os pacientes vão para o
transplante com a carga viral muito baixa, o que torna os resultados
muito bons e muito próximos aos dos outros pacientes", diz Rocha, que
afirma que ainda é muito cedo para falar em cura.
"O transplante mata o reservatório de células de HIV no sangue e
substitui por células saudáveis do doador, mas ainda não sabemos se o
HIV tem reservatórios em outras regiões do corpo, como em células do
cérebro, por exemplo. A doença pode voltar."
Outro fator que limita falar em cura, diz Rocha, é que os
transplantados continuam tomando os antirretrovirais. "Como atribuir a
cura ao transplante se os pacientes ainda tomam os antirretrovirais? O
transplante tem risco, tem efeitos colaterais. Ainda é preciso ter
cautela."
A pesquisadora Valdilea Veloso, do Instituto de Pesquisas Clínicas
Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz, diz que esse é o caminho para a
busca da cura. "É muito experimental, mas são os primeiros passos. A
tendência é estudar combinações imunológicas com antirretrovirais." /COM
AGÊNCIAS INTERNACIONAIS
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